quarta-feira, 11 de agosto de 1999

Contos

ARIELA 
- Orelhas?

- Levemente pontiagudas.

- Cabelos?

- Castanhos.

- Cor da pele?

- Parda.

- Altura?

- Um metro e sessenta e seis.

- Peso?

- Cinquenta e dois.

- Algum dedo a mais?

- Não.

- Alguma marca de nascença?

- Hum... sim. Do tamanho de uma ameixa seca, no canto direito da nuca, apenas um pouco mais escura que a pele.

- Só?

- Só.

- E os olhos?

- Ah, deixa castanhos mesmo.

- Mas tudo nela será assim, tão mediano?

- Tudo bem, põe verdes.

- E o rabinho?

- Aprenda comigo uma coisa, estagiário. Anjos caídos não precisam de detalhes tão aparentes.

- Mas...?

- Dê-lhe um netbook e aguarde um par de semanas.

- Tudo bem, chefe, só tem mais um detalhe...

- Qual?

- Parece que estamos sendo observados, o que devo fazer com ele?

- Absolutamente nada. Os dois chegarão juntos à Terra. Dentro de si ele carregará a certeza de que sua metade existe e vai procurar incansavelmente por ela. Já Ariela estará bem perto, deleitando-se com todos os outros homens. Não é castigo. Apenas o destino que ele teve a infelicidade de conhecer.


BORBOLETA E MARIPOSA

A lua cobre o céu com uma manta de estrelas enquanto duas irmãzinhas, de oito e dez anos, conversam no jardim de casa.

- Bia, qual é a diferença entre uma borboleta e uma mariposa?

- Borboletas gostam do dia. Mariposas, da noite.

- Só isso?

- Borboletas são belas, graciosas, delicadas.

- E as mariposas?

- As mariposas, quando não estão camufladas num tronco de árvore ou numa parede, se debatem feito loucas nas lâmpadas, como essas bem aqui.

- Se pudesse escolher, seria borboleta ou mariposa?

- Borboleta, claro!

- E eu?

- Você o quê?

- Eu seria o quê?

- Mariposa.

Nesse momento o beicinho da caçula tremeu, os olhinhos ficaram umedecidos e Sofia já ia correndo chorar no colo da mãe quando uma mariposa fez o derradeiro voo em direção à luz e caiu morta sobre o pezinho descalço da pequena. Sob o olhar indiferente da primogênita, Sofia recolhe cuidadosamente o inseto, depositando nele todo o amor que estava contido em seu coração de criança e carrega-o até seu quarto. Lá, imortaliza a mariposa num desenho colorido, feito às pressas, e a guarda dentro de uma boneca de pano.


O DESTINO

No dia do meu julgamento final estarão Deus e o Capeta brigando por minha alma. E eu debandarei, claro, para o lado que me for mais conveniente. E, por favor, não me rezem missas de sétimo dia. Tampouco façam santinhos com mensagens sentimentais e minha foto. Nunca gostei de fotos e não é evocando recordações terrenas que pretendo prosperar na eternidade que, para mim, tem um significado bem particular. Sempre acreditei que cada alma aguarda em seu lugar merecido até que todos que tiveram uma vida ligada àquela deem o último suspiro também. Aí começa tudo de novo. Mas isso não demora muito, no máximo uns cem anos. Tempo que na vida eterna, penso eu, deve passar como num piscar de olhos.

Não acredito que o inferno é ruim como pintam. Nem que o céu é aquela maravilha. O Diabo que me livre de ficar ouvindo querubins cantando e tocando harpas o dia todo. E Deus que me salve de arder em chamas que não se apagam nunca. Estou em dúvida. Entretanto, qualquer um dos dois destinos me satisfaz. Só não aceito o purgatório. Odeio lugares mornos!

Em sonho, já tive o Ardiloso como parceiro de truco. A partida acontecia sobre uma mesa dessas de boteco, bem barulhenta, que estava forrada com uma toalha velha de banho, e era um domingo de sol. Há poucos metros, umas ninfetas eufóricas divertiam-se fazendo topless na piscina. Fumávamos muito e bebíamos cerveja barata, mas gelada. Meus melhores amigos estavam lá e os mais bêbados começaram a batucar sambas nas cadeiras. Não lembro do resto. Quando acordei estava com um hálito literalmente desgraçado.

Já sonhei com O Rei dos Reis também. Num dia fresco de outono conversávamos, sentados na grama de um festival que se assemelhava a Woodstock, a contar pelas vestimentas, mas de música gospel. Ele trajava uma bata branca, calça marrom boca de sino e chinelos de palha. Os únicos acessórios eram duas pulseiras com dizeres, dessas que qualquer hippie sabe fazer. Na direita, a palavra AMOR. Na esquerda, PAZ. Curioso, sobretudo com o adorno, perguntei se a ordem das pulseiras não estaria trocada. E, com a firmeza e a serenidade celestiais, ele explicou que a paz é pura consequência do amor.

- Mas o amor às vezes é perturbador, repliquei.

- A paixão é perturbadora. E você sabe disso. Assim como conhece todas as outras respostas às perguntas que planejou me fazer, concluiu com um sorriso terno.

Instigado, despertei com o frio das três horas da manhã.